"[...] expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade que chovia - peneirava - uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, [...]" (Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, 2010)

Martha Medeiros

Querer mesmo

O navegador Amyr Klink, ao ser perguntado por um repórter sobre o que sentia a respeito das pessoas que passam 30 anos trabalhando no mesmo escritório, sentadas a vida inteira diante da mesma escrivaninha, respondeu: "inveja". Klink admira quem consegue ser feliz numa rotina imutável e tediosa. Como ele não consegue, sai pelo mundo em busca de desafios.
Foi uma resposta provocativa. Inveja é justamente o que nós, seres confortavelmente acomodados, sentimos de Amyr Klink, quando o vemos excursionar por cenários glaciais de tirar o fôlego e fazendo da superação dos seus medos a sua rotina. Qual o segredo desse cara, afinal, para conciliar família e aventura? A gente também adoraria essa vida, mas a diferença entre ele e nós, acreditamos ingenuamente, é que ele tem patrocínio para sua falta de juízo, enquanto que nós temos juízo de sobra e dinheiro contadinho no final do mês.
Na verdade, nossa resignação é conveniente, já que realizar sonhos dá muito trabalho. A única diferença entre ser um navegador e ser um economista-que-sonha-em-ser-um-navegador é que um quis mesmo. O outro não quis tanto assim.
Para romper convenções e arriscar-se no desconhecido, é preciso querer mesmo. Querer mesmo escalar uma montanha, querer mesmo surfar uma onda assassina, querer mesmo filmar um documentário na África, querer mesmo trabalhar na Nasa, só para citar outras aventuras supostamente inatingíveis. Querer mesmo, em vez de apenas querer, abre a cancela de qualquer fronteira, seja ela geográfica ou emocional.
Antes de alcançar os pontos mais indevassáveis da Antártida a bordo de barcos equipados com alta tecnologia, Klink remou bastante, não ficou em casa mentalizando seu sonho. Querer mesmo significa abrir mão de uma série de confortos, tomar muito chá de banco, ver inúmeras ideias darem errado antes de darem certo. E, em troca, ser chamado de doido varrido.
Querer, a gente quer muita coisa. Mas quase sempre é um querer preguiçoso, um querer que não nos impulsiona a levantar da cadeira, ainda mais quando nosso projeto tem 0,5% de chance de sucesso. É difícil conseguir o que se quer. Só se torna menos difícil quando se quer mesmo. Pena que alguns só querem mesmo é ser rico ou ser gostosa, para isso fazendo coisas muito mais insanas do que faz Amyr Klink. O que todos deveriam querer, mas querer mesmo, é fugir da mediocridade.
(Martha Medeiros, Montanha Russa, 2009, p. 166-167)  


Falhas

Umas das coisas que fascinam na cidade de San Francisco é ela estar licalizada sobre a falha de San Andreas, que é um desnível no terreno que provoca pequenos abalos sísmicos de vez em quando e grandes terremotos de tempos em tempos. Você está muy faceiro caminhando pela cidade, apreciando a arquitetura vitoriana, a baía, a Golden Gate, e de uma hora para outra pode perder o chão, ver tudo sair do lugar, ficar tontinho, tontinho. É pouco provável, mas existe a possibilidade, e isso amedronta mas ao mesmo tempo excita, vai dizer que não?
Assim são também as pessoas interessantes: têm falhas. Pessoas perfeitas são como Viena, uma cidade linda, limpa, sem fraturas geológicas, onde tudo funciona e você quase morre de tédio.
Pessoas, como cidades, não precisam ser excessivamente bonitas. É fundamental que tenham sinais de expressão no rosto, um nariz com personalidade, um vinco na testa que as caracterize.
Pessoas, como cidades, precisam ser limpas, mas não a ponto de não possuírem máculas. É preciso suar na hora do cansaço, é preciso ter um cheiro próprio, uma camiseta velha pra dormir, um jeans quase transparente de tanto que foi usado, um batom que escapou dos lábios depois de um beijo, um rímel que borrou um pouquinho quando você chorou.
Pessoas,como cidades, têm que funcionar, mas não podem ser previsíveis. De vez em quando, sem abusar muito da licença, devem ser insensatas, ligeiramente passionais, demonstrar um certo desatino, ir contra alguns prognósticos, cometer erros de julgamento e pedir desculpas depois, pedir desculpas sempre, pra poder ter crédito e errar outra vez.
Pessoas, como cidades, devem dar vontade de visitar, devem satisfazer nossa necessidade de viver momentos sublimes, devem ser calorosas, ser generosas e abrir suas portar, devem nos fazer querer voltar, porém não devem nos deixar 100% seguros, nunca. Uma pequena dose de apreensão e cuidado devem provocar, nunca devem deixar os outros esquecerem que pessoas, assim como cidades, têm rachaduras internas, portanto, podem surpreender.
(Martha Medeiros, Montanha Russa, 2009, p. 58-59)